domingo, 3 de junho de 2018

BioBibliografia 2018

Biografia:

Sou reformado do Comércio & Serviços e dedico os tempos livres que, logicamente, são todos os momentos do dia e da noite, à escrita.

Nasci a 1 de Janeiro de 1954 em Porto Alexandre, Angola. No entanto os meus pais, que são uns desmancha-prazeres,  juram a pés juntos que, já antes disso, eu tinha sido dado à luz, a 17 de Novembro de 1950, na Póvoa de Varzim. Quer eles queiram, quer não, eu não tenho disso memória.

Estudei em Angola, com exceção de três anos quando, com medo do início da guerra em Angola, meu pai enviou a esposa e os dois filhos (na altura éramos apenas dois) para Portugal. Foi a terceira e a quarta classe, a admissão ao Liceu e o 1º ano. De regresso a Angola, completei o Curso Geral do Liceu.

Em Porto Alexandre, Moçamedes, Nova Lisboa, Sá da Bandeira, Carmona e Luanda, por esta ordem e de poiso em poiso, como o bico-de-lacre ou como o tarrote, vivi até 1979, altura em que, desiludido, vim para Portugal e passei a residir na Póvoa de Varzim.

Escrevo desde os 15 anos de idade mas, desse tempo, nada guardei: os colegas, amigos e professores encarregaram-se de arrecadar os meus escritos. Até hoje nada consegui recuperar.  Publiquei poemas na página "Resistência" de Artes & Letras do Diário de Luanda. Com a popularização da internet outros tantos foram parar à minha rede de blogues "Angola Haria" - https://ii-angolaharia.blogspot.com/

Mas eu sou muitos eus, ou muitos outros, se quiserem. agoNia Moitão, Paulo Garcia, Txitoka Menangula e joaQuim 6-Cento, são esses outros eus, os meus irmãos gémeos em sina. Alter egos singulares, contam coisas estranhas, muito estranhas até. Porém recusam-se terminantemente a fazê-lo sob qualquer forma escrita ou impressa. Acham que tudo aquilo o que contam não tem a importância que eu lhes quero dar. E xingam-me.

O curioso de tudo isto é que as suas estóras se entrecruzam sempre, não fossem eles almas da mesma pele.

A minha luta, ou função se quiserem, é passar para o papel o que eles me vão contando, um pouco ao jeito das malundas tradicionais. (1)

agoNia Moitão, O Facada, nasceu na Póvoa de Varzim (Portugal) e pelos pais foi levado para Porto Alexandre (Angola) com três anos de idade;
em criança acalentou o sonho de ser pescador, mestre de sacada;
tornou-se guarda de livros.

Paulo Garcia, aliás Sapalo Monakitembu, nasceu no Pinda (Angola);
foi pescador do atum e das garoupas, pescou quiandas e uma deu-lhe um filho;
foi louco, autista e bandido, de acordo com a consciência de certos homens da terra;
tornado kanzumbi, discípulo dileto de Kalunga e protegido de Zambi, foi deificado como Deus-Herói, protetor dos quimbares, que passaram a tratá-lo por Deus Tximbari.

Txitoka Menangula nasceu no Bailundo (Angola), foi contratado em Porto Alexandre, estivador no porto de Luanda e guerrilheiro no Leste de Angola;
preso a 27 de maio de 1977, altura do genocídio, desapareceu sem deixar rasto;
reapareceu em 1979 em Portugal, para continuar a fazer aquilo que, verdadeiramente, sempre o entusiasmou: contar estórias.

joaQuim Bandika Fiengesa 6-Cento nasceu, presumivelmente, no Quitexe, norte de Angola, em março de 1961, na hora do fogo;
militante do nacionalismo e agitador político;
refugiou-se em Portugal, por desamor.

Tudo visto, espero que não façam uma leitura linear do que fica dito. Porque todo eu sou surrealismo.


Obra publicada:

Solaris, o oitavo mar” – Admário Costa Lindo/joaQuim 6-Cento - Corpos Editora/World Art Friends, Porto, 2011;

Euracini, de pátrias e maresias” – Admário Costa Lindo/agoNia Moitão, o Facada - Corpos Editora/World Art Friends, Porto, 2012;

Makamba ou o voo do flamingo” - Admário Costa Lindo – e.a. (CreateSpace/Amazon, U.S.A.), 2013).


Próximas edições:

o bico-de-lacre e o tarrote (dos pássaros sem fronteiras e do bicho careta)” – trilogia:
     I – “o livro dos tarrotes” – Admário Costa Lindo/agoNia Moitão, o Facada,
     II – “o livro dos bicos-de-lacre” - Admário Costa Lindo/obra conjunta,
     III – “o livro dos bichos-caretas” - Admário Costa Lindo;
 “Da refrega e outros poemas” – Admário Costa Lindo
6-Cento & os outros” – Admário Costa Lindo


Em organização:

O Angolense - dicionário da linguagem angolana” – Admário Costa Lindo
(encontra-se em publicação, a 3ª edição online, revista e aumentada

 aqui: https://oangolense.blogspot.com/)




Admário Costa Lindo



1. Narrativas tradicionais, de cariz histórico, que explicam a origem dos povos e nações.



domingo, 28 de janeiro de 2018

Revista LiteraLivre ed. 7







"O Canto do Siripipi"
Revista LiteraLivre, 
edição 7
pág. 87




Tabacaria




Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho genios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, para o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei que moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheco-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

                          




 Álvaro de Campos










Sinto




Sinto
que em minhas veias arde
sangue,
chama vermelha que vai cozendo
minhas paixões no coração.

Mulheres, por favor,
derramai água:
quando tudo se queima,
só as fagulhas voam
ao vento.





Federico García Lorca, in 'Poemas Esparsos'
Tradução de Oscar Mendes









sábado, 27 de janeiro de 2018

Mukai . I




Corpo já lavrado
equidistante da semente
             é trigo
             é joio
             milho híbrido
             massambala
resiste ao tempo
        dobrado
        exausto

sob o sol
que lhe espiga

 a cabeleira.



Ana Paula Tavares

"O lago da lua"



Amargos como os frutos




Amado, por que voltas
com a morte nos olhos
e sem sandálias
como se um outro te habitasse
num tempo
para além
do tempo todo

Amado, onde perdeste tua língua de metal
a dos sinais e do provérbio
com o meu nome inscrito

 Onde deixaste a tua voz
 macia de capim e veludo
 semeada de estrelas

Amado, meu amado,
o que regressou de ti
é a tua sombra
dividida ao meio
é um antes de ti
as falas amargas

como os frutos.



Ana Paula Tavares

"Dizes-me coisas amargas como os frutos"



A Anona




Tem mil e quarenta e cinco
Caroços
Cada um com uma circunferência
À volta

Agrupam-se todos
(arrumadinha)
No pequeno útero verde

Da casca



Ana Paula Tavares

"Ritos de passagem"






Voz do Sangue




Palpitam-me
os sons do batuque
e os ritmos melancólicos do blue


Ó negro esfarrapado
do Harlem
ó dançarino de Chicago
ó negro servidor do South


Ó negro da África
negros de todo o mundo


eu junto
ao vosso magnífico canto
a minha pobre voz
os meus humildes ritmos.


Eu vos acompanho
Pelas emaranhadas áfricas
do nosso Rumo.


Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a nossa história
meus irmãos.



Agostinho Neto
1948
Original dactilografado de "Sagrada Esperança".
Versão diferente em Antologia Temática, por Mário de Andrade.
2.a ed. Argel. Dez. 1967.
Fundação António Agostinho Neto




Velho Negro




Vendido
e transportado nas galeras
vergastado pelos homens
linchado nas grandes cidades
esbulhado até ao ultimo tostão
humilhado até ao pó
sempre sempre vencido


É forçado a obedecer
a Deus e aos homens
perdeu-se


Perdeu a pátria
e a noção de ser


Reduzido a farrapo
macaquearam seus gestos e a sua alma
diferente


Velho farrapo
negro
perdido no tempo
e dividido no espaço!


Ao passar de tanga
com o espírito bem escondido
no silencio das frases cõncavas
murmuram eles:
pobre negro!


E os poetas dizem que são seus irmãos.





Agostinho Neto
“Sagrada  Esperança”








Quitandeira




A quitandeira.
Muito sol
e a quitandeira à sombra
da mulemba.

-Laranja, minha senhora
laranjinha boa!

A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega.

A quitandeira
que vende fruta
vende-se.

-Minha senhora
laranja, laranjinha boa!

Compra laranjas doces
compra-me também o amargo
desta tortura
da vida sem vida.

Compra-me a infância de espírito
este botão de rosa
que não abriu
principio impelido ainda para um início.

-Laranja, minha senhora!

Esgotaram-se os sorrisos
com que chorava
eu já não choro.

E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas
enterrado nas roças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem.

Como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comunidade de senhores ricos
a alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.

Aí vão as laranjas
como eu me ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.

Tudo tenho dado.

Até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-as aos poetas.

Agora vendo-me eu própria.
-Compra laranjas
minha senhora!
leva-me para as quitandas da vida
o meu preço é único:
-sangue.

Talvez vendo-me
eu me possua.

-Compra laranjas!



Agostinho Neto
“Sagrada  Esperança”







Kalunga




Ela veio do mato
e confundiu
as estrelas com as luzes da cidade



Na cidade
os seus olhos eram duas estrelas



E no coração de muitos homens
não brilhou outro sol
senão a linda filha de soba
que viera das terras da Lunda
e morava no muceque Sambizanga



Mas os seus olhos confusos
descobriram na cidade
um mundo diferente
onde a sua alma era aferrolhada
nos navios que levaram do Congo
os homens sobre o mar
Kalunga! Morte



Aquela cidade era um mar
era a sua morte

E na cidade brilhante
que é um mundo, um mar
Kalunga!
onde em cada rua partem navios
para longe de cada  homem
perdeu duas estrelas-
Os olhos
da linda filha dum soba da Lunda.





Agostinho Neto
“Renuncia Impossível”
Fundação António  Agostinho Neto

Original dactilografado. Arquivo fls.69






As Palavras Interditas




Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.

Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.

Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te... E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.




Eugénio de Andrade

"Poesia e Prosa"

Urgentemente



É urgente o amor
É urgente um barco no mar

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.






Eugénio de Andrade

"Até Amanhã"



Um Pequeno Sismo




Há um pequeno sismo em qualquer parte
ao dizeres o meu nome.
Elevas-me à altura da tua boca
lentamente
para não me desfolhares.
Tremo como se tivera
quinze anos e toda a terra
fosse leve.
Ó indizível primavera.


Eugénio de Andrade
Os Sulcos da Sede

in “Bertrand Somos Livros”





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domingo, 14 de janeiro de 2018

Palavra de Poesia




Num estudo dedicado à imaginação, precisamente intitulado “A Imaginação como valor”, diz Wallace Stevens que a faculdade de imaginar, considerada como metafísica, é em si mesma a única via de acesso para a realidade.  Na linguagem, sistema codificado de signos, encontramos o labor da imaginação, isto é, o desmembramento, ou a dissolução do signo, arbitrário por definição e, por isso mesmo, irredutível à sua existência abstrata, meramente conceptual, pois que uma palavra, para além de ser na essência um som articulado e terreno de germinação de imagens e de sentidos, pode ser também facto concreto, organismo vivo, coisa em si, porque se realiza textualmente, figuralmente.

Na lógica poética, que é uma não-lógica, segundo Lupasco, o signo extrema-se e estremece, ganhando proporções novas e enfrentando um não-limite, um não-lugar que ele próprio cria e ocupa quando extravasa da historicidade para o incomunicável. A poesia nasce para o impasse e afirma-se na contradição mesma que a define. A essa historicidade, que é já um outro plano do saber, pertence o signo poético, a palavra de poesia que faz da elipse a razão da sua aporia e, nesse sentido, a aventura do poema é sempre um convite a ultrapassar a fronteira inexpugnável da dúvida, aquilo mesmo que faz da poesia ser poesia.



CORTEZ, António Carlos. Palavra de Poesia, José Tolentino Mendonça, A pedra que flutua, JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, Paço de Arcos, 20.12.2017.




domingo, 10 de dezembro de 2017

Ensaio sobre a Maresia




I


rosa dos ventos

foz da brisa
ao lamber das águas

via láctea
e têmpera a sagitário,



II

fogo solar

matriz de aurora
estela e sanselimão

rota aberta de
adestrar gaivina e mar,



III

agulha de marear

o rumo traçado
no leme da vaga

embriaga o vento ao navegar,



IV

sulcos de mar

as rugas do sal
no rosto tisnado

paleta aguarela de sol,



V

murmúrios de búzio

os salmos da lua
a parir na vazante

cantos da alga aos iodores,



VI

águas do fundo

raiz da maré
ao correr do vento

medula e sabor a maresia.





Admário Costa Lindo
Solaris o Oitavo Mar (2011)





Pintura Digital
ciclo do Mar
série Aves Marinhas
a. costa lindo





Epigramáticos




1.

Voz oca
a decompor-se
em corpo:

de que glossa
a glote?


2.

Hálito
de lâmina
entre língua
e ar:

declinando
os lábios.


3.

Luminante
luz
num mínimo
murmúrio:

limiar ou imo.


4.

Salíneo
som
lunar:

húmido
de azul.


5.

Desde que
delírio
erecta
a língua
liquefeita?

6.

Desviava o reverso
da falha, devolvendo
o cerco:

se ínvio
era o invés.


7.

Diâmetro
da morte
amortecendo
certo:

de que centro
tenso?


8.

Adormecida
mão: sem ritmo
ou teclas
de um só vão
destino.


9.

Sol cego
doutro aedo
ido:
num sol
stício
breve.


10.

Dentre os úberes
lentos: leite lácteo
ou mel lúbrico
das cabras
estelares.






José Augusto Seabra
Epigramáticos
in “Nova Renascença”, nº 2, vol. I





BioBibliografia 2018

Biografia : Sou reformado do Comércio & Serviços e dedico os tempos livres que, logicamente, são todos os momentos do dia e da noite,...